quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

"Tenho um novo pai, professora"

(from Caramel) 


Longe vão os tempos em que os casamentos só duravam porque uma separação era vista como uma vergonha familiar... Um escândalo. E, como qualquer escândalo na época, falado por toda e qualquer alma das redondezas (infelizmente, para algumas famílias, esses tempos não são assim tão longínquos. Por muito angustiante e triste que seja, ainda há quem sofra dentro de casa, em silêncio, sem pôr a hipótese da separação.)

Porém, nas últimas décadas, o número de alunos por turma com pais separados é enorme. E quando escrevo enorme, é literalmente enorme.
Por um lado, significa que as pessoas estão cada vez mais abertas à mudança e que se estão constantemente em desacordo e a discutir, mais vale ir cada um para seu lado. Assim, poupam muitas dores de cabeça, muito sofrimento a elas mesmas e claro, aos filhos.

Mas separar, no dicionário, significa dispor em grupos, pôr à parte, dividir, desunir-se, partir.

Qual é a criança que, gostando dos pais e sentindo-se amada, deseja do fundo do coração dispor os pais em diferentes grupos? Pôr um dos pais à parte? Dividir os pais? Desunir os laços que os unem como família? Partir o amor dos pais?

Claro, há crianças que estão tão saturadas de ver os pais discutir... Estão tão angustiadas... Estão tão cansadas do medo (o que vai acontecer se eles, os pais, nunca pararem de discutir?) que estas crianças, estas sim, desejam do fundo do coração que os pais se separem. Só que, e reparem nisto desejam-no porque não têm escolha.

Às vezes, os pais separam-se e, para surpresa da criança, de repente tudo melhora: os pais continuam presentes na vida da criança e constata, de queixo caído e dente de leite em falta, que os pais sozinhos são muito mais divertidos e menos rabugentos. Estes são os casos de sucesso (um sucesso com um bom penso da Disney, por cima da ferida que ficou e que é preciso cuidar para o resto da vida).

Mas e as crianças que, tendo os pais separados, um dos pais está ausente? Passa um fim-de-semana e o pai ou mãe não apareceu. Passa outro e nem sinal. Os meses vão passando, até que conhecem quem algumas apelidam de "novos pais". Entramos aqui num novo mundo. O mundo dos vazios naqueles corações ainda pequenos de tamanho, mas tão grandes como os dos adultos. Estas crianças estão desejosas de preencher aquele espaço que ficou. A ausência. Aquele papel que existia na vida delas. E, para a vida fazer mais sentido, estas crianças precisam de dar voz, cara, cabelo e sorriso a esse vazio.

Assim, quando a mãe tem um novo namorado, ou o pai tem uma nova namorada, algumas destas crianças parece que entram num daqueles barquinhos de parque de diversões que é suposto imitarem canoas que caem num percurso de água a pique. Estas crianças estão no topo do mundo, tal é a alegria de terem um novo pai! Um novo pai.

Só que às vezes  (e porque a vida tem destas coisas e nada é fácil neste mundo...) o novo pai, como o biológico, também vai embora. E um bom penso Disney não chega para tapar a nova ferida que agora foi esgravatada ainda mais. E às vezes, ainda surge o terceiro pai e daquela vez é que vai ser... Mas não foi.

"Professora, tenho um novo pai!"

Quando oiço isto fico com o coração dividido. Fico feliz pela esperança naquele coração pequenino. Fico feliz pela nova chance de serem felizes. Mas cá dentro fica a angústia. A angústia de que chegue um dia em que já não lhe apetece fazer o ditado, nem as contas nem o desenho sobre o inverno. Sente falta do pai. E do outro pai. E do primeiro de todos.

A maior parte da vida, para nós, humanos, é feita de riscos. Arriscamos para sermos felizes. Eu defendo que a felicidade vale a pena alguns riscos. Mas também sei (porque lhes vejo as caras tristes, o desinteresse no jogo que a turma inteira joga) que os pais têm de ter consciência de que apresentar alguém importante à criança não é como apresentar essa pessoa aos amigos. Para os amigos, serve um "que sejam felizes que mereces!", mas para as crianças, às vezes só serve um "este vai ficar para sempre, não vai?"


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