quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A deliciosa arte de não fazer nada

(from Petit Backstage) 


Hoje li no Expresso uma entrevista ao neuropsicólogo Álvaro Bilbao que me encheu as medidas, como nenhuma outra o fez nos últimos tempos.
De todas as coisas acertadas que disse (no meu ponto de vista), uma das mais acertadas foi talvez dizer: "É incrível o que os miúdos inventam quando os pais não lhes dizem o que fazer."

Não podia concordar mais. Ano após ano, vejo que uma grande, grande (e repito novamente) grande maioria dos pais faz da vida dos filhos uma vida que, em alguns casos, suplanta a dos filmes (onde tudo é possível).

Já pude tirar algumas conclusões sobre esta tendência e chegar aos motivos pelos quais os pais o fazem. De uma maneira generalizada, os motivos são três:

1) os pais querem que os filhos tenham inúmeras capacidades e qualidades para se tornarem em crianças dotadas e capazes, o que é completamente legítimo

2) os pais sentem-se melindrados em não alinhar nas ideias dos restantes pais, pelo que se o Rodrigo, a Leonor, o Miguel e a Sofia andam na música, quem são eles para não por a Joana na música também...

3) os pais têm dias de trabalho exaustivos e longos, pelo que deixar o Duarte mais duas horas no colégio a ter Karaté ou Ginástica parece, de repente, uma excelente ideia, enquanto fazem o jantar sossegados ou vão ao supermercado

Claro está que as atividades para além da carga horária na escola podem fazer um bem enorme às crianças. Ajudam-nas a descomprimir de uma carga de horas sentadas na mesma posição. Ajudam-nas a gastar energia, a fazer amizades e a desenvolverem-se como pessoas. Mas só ajudam (e é importante que se perceba isto) quando são na medida certa e sem exageros.

Quando era pequena tocava alegremente numa banda filarmónica, mas verdade seja dita que o tempo que passei na banda foi muito reduzido. Depois da banda filarmónica, andei na ginástica uma ou duas vezes por semana.

Mas longas foram as tardes em que, depois de fazer os trabalhos de casa, recortava cartolinas para fazer caixas registadoras para fingir que tinha um supermercado ou uma loja de gomas, completamente feliz com o suposto tédio à minha volta. Quando não recortava cartolinas, construía edifícios com livros de capa dura, antes de caírem todos no chão e me lembrar de fazer outra coisa qualquer.

Hoje em dia, as crianças saem das aulas para um sem fim de atividades... E como se isso não bastasse, passam os fins-de-semana fora de casa, constantemente em programas sociais... Para chegarem às férias grandes, onde as esperam mais dezenas de atividades.

Muitas delas, já não conseguem sequer ser criativas, porque têm estado demasiado ocupadas em várias atividades e pouco entediadas, a inventar o que fazer.

E é aqui que reside a ironia da questão: os pais acham que, por levarem as crianças a diferentes atividades e a conhecer diferentes coisas, as tornam mais criativas... Quando em alguns casos, acaba por funcionar de maneira oposta.

A falta de criatividade espelha-se na forma como no intervalo já não sabem às vezes inventar jogos, a não ser que copiem o que as mandaram fazer numa ou noutra atividade. A falta de criatividade espelha-se nos textos que escrevem, de poucas linhas onde se limitam ao essencial. São capazes de descrever um fim-de-semana tão cheio de detalhes em poucas palavras "Este fim-de-semana fui ao treino de futebol, fui à aula de música, fui ao cinema, fui com a minha avó às compras e vi televisão."

De tudo o que fizeram, parece que estão tão viciadas em estarem com os dias tão cheios, que já nada tem grande relevo ou importância.

Algumas, como já presenciei, dizem que os pais são maus pais, porque não os deixam estar sossegados (quando na maioria dos casos, os pais são excelentes pais tentando dar-lhes uma vida boa, feliz e equilibrada). Então... O que será que estas crianças quererão dizer com isto? Por que é que será que estas crianças querem desesperadamente estar sossegadas?

Outras, estão viciadas em atividades e pedem aos pais para as inscreverem em só mais uma. Assim que surge um momento de sossego ou tédio, ficam irritadiças, querem um brinquedo novo, querem fazer alguma coisa e depressa.

Rouba-se assim a essas atividades todas, muito do bem que elas fazem (porque realmente fazem).

E às tantas, já temos pais a recusarem campos de férias com menos atividades e mais tempo livre, porque acham que pelo dinheiro que pagam, têm o direito a exigir mais atividades, mais originalidade, mais tudo.

E às tantas, já temos pais a sentirem-se maus pais por não terem dinheiro para pagar aos próprios filhos aulas de guitarra, pintura artística, treinos de futebol, ginástica ou natação.
Ou mesmo que possam fazê-lo, sentem-se maus pais por quererem simplesmente ficar em casa com os filhos, a aproveitar também o bom que é ajudá-los nos trabalhos e vê-los inventar maneiras de se entreterem sozinhos.

E às tantas, já temos crianças que não conseguem estar sentadas numa esplanada ou restaurante sem estarem ocupadas com alguma coisa.

E às tantas, já temos crianças que quando lhes perguntamos se o fim-de-semana foi bom (porque disseram que fizeram tantas coisas e tão diferentes) nos respondem com: "Foi normal, nada de especial"

E às tantas a vida torna-se nesse nada de especial, onde tudo acontece tão rápido e em tanta quantidade.

1 comentário:

Bailarina disse...

Eu deixo o meu filho não fazer nada. Porque há momentos em que ele gosta mesmo de não fazer nada, e isso pode ser fabuloso.

Beijo